O Marxismo e a Educação
Por Roberto Catarino
Enquanto a pedagogia tradicional considera os educandos como indivíduos abstratos e a pedagogia moderna os considera como indivíduos empíricos, a pedagogia concreta é aquela que considera os educandos como individuos concretos, isto é, como sínteses de relações sociais.
A relação entre marxismo e educação pode ser considerada de múltiplas, e variadas, formas. Um exemplo dessa variedade é o livro, recentemente publicado, Marxismo e educação: debates contemporâneos (LOMBARDI e SAVIANI, 2005). Nele, além da Apresentação de José Claudinei Lombardi – que discute amplamente a atualidade do marxismo –, encontram-se textos de diferentes autores, abordando além da visão de Marx e Engels as contribuições de Lênin, Gramsci, Althusser, bem como os temas da construção dos sistemas educacionais, da dialética e pesquisa em educação, da qualificação dos trabalhadores, da crítica ao construtivismo, concepção socialista de educação, politecnica e pedagogia histórico-crítica.
Portanto, o leitor interessado em adquirir uma compreensão mais aprofundada das relações entre marxismo e educação poderá, com proveito, lançar mão dessa obra. No presente texto, tomo um aspecto específico que, a meu ver, constitui o cerne da concepção filosófica de Marx. Trata-se da categoria de “concreto”. Para tanto, abordarei o significado dessa categoria tal como a expõe Marx no “método da economia política”. Discutirei a concepção marxista no quadro da filosofia moderna e contemporânea. E, finalmente, examinarei sinteticamente as implicações dessa concepção para a pedagogia.
O significado do conhecimento em Marx
De acordo com Marx, o movimento global do conhecimento compreende dois momentos. Parte-se do empírico, isto é, do objeto tal como se apresenta, à observação imediata. Nesse momento inicial, o objeto é captado numa visão sincrética, caótica, ou seja, não se tem clareza do modo como ele está constituído. Aparece, pois, sob a forma de um todo confuso, como um problema que precisa ser resolvido. Partindo dessa representação primeira do objeto chega-se, por meio da análise, aos conceitos, às abstrações, às determinações mais simples. Uma vez atingido esse ponto, faz-se necessário percorrer o caminho inverso (segundo momento), chegando pela via da síntese de novo ao objeto agora entendido não mais como “a representação caótica de um todo”, mas como “uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas” (MARX, 1973, p. 229).
Assim compreendido, o processo de conhecimento é, ao mesmo tempo, indutivo e dedutivo, analítico-sintético, abstrato-concreto, lógico-histórico.
Nas palavras do próprio Marx, “o primeiro passo reduziu a plenitude da representação a uma determinação abstrata; pelo segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto pela via do pensamento” (Idem, Ibidem).
O empirismo – e, portanto, o positivismo – se limita ao primeiro passo. Para essa tendência gnosiológica, conhecer, fazer ciência, é reduzir o complexo ao simples; é passar do particular ao geral; é chegar a conceitos gerais, por isso mesmo, simples e abstratos, dotados – exatamente por causa de seu caráter abstrato – de validade universal.
Inversamente, o racionalismo idealista limita-se ao segundo passo. Para essa tendência é o pensamento que constitui o homem real; o que significa que também o mundo só é admitido como real, enquanto concebido. “Por isso Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento, que se concentra em si, se aprofunda e se movimenta por si próprio, enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é para o pensamento precisamente a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir como concreto pensado” (Idem, Ibidem).
De fato, “a totalidade concreta enquanto totalidade pensada, enquanto representação mental do concreto”, é produto do pensamento; resulta da atividade de conceber. Mas não é “produto do conceito que desse origem a si próprio, que refletisse exterior e superiormente à observação imediata e à representação” (Idem, p.230). Ao contrário, ela é “produto da elaboração de conceitos a partir da observação imediata e da representação” (Idem, Ibidem).
Deve-se distinguir, portanto, o concreto real do concreto pensado. “O todo, na forma em que aparece no espírito como totalidade pensada, é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível” (Idem, Ibidem), isto é, conceitualmente. Já o concreto real, antes do processo de conhecimento, assim como depois, “conserva sua independência fora do espírito” (Idem, Ibidem).
Vê-se, pois, que estamos diante de uma concepção claramente realista, em termos ontológicos, e objetivista, em termos gnosiológicos. Assenta-se, portanto, em duas premissas fundamentais: 1. As coisas existem independentemente do pensamento, com o corolário: é a realidade que determina as idéias e não o contrário; 2. A realidade é cognoscível, com o corolário: o ato de conhecer é criativo não enquanto produção do próprio objeto de conhecimento, mas enquanto produção das categorias que permitam a reprodução, em pensamento, do objeto que se busca conhecer.
Uma concepção ultrapassada?
Indicada a concepção marxista do conhecimento, é inevitável enfrentar objeções do tipo: mas essa não é uma concepção ultrapassada, ligada à visão moderna, com sua “metafísica do sujeito”? Não é Marx um autor do século XIX, marcado pelo paradigma do racionalismo iluminista, amplamente contestado em nossa época, delimitada pelo linguistic turn?
De fato, está amplamente difundido, nos dias de hoje, o enquadramento de Marx como um autor enclausurado aos limites da modernidade, equiparando-se a Comte, Spencer, Darwin e a outros representantes do século XIX, cujo pensamento girava ainda no âmbito das aporias enunciadas por Kant.
Mas é exatamente essa espécie de lugar-comum de nossa época que precisa ser discutida.
A meu ver, esse enquadramento de Marx aos limites da modernidade é um equívoco gnosiológico, isto é, científico e filosófico, embora não se possa negar que seja um acerto ideológico. Esclareçamos esse enunciado, sem dúvida, polêmico.
É mais ou menos consensual o entendimento de que a filosofia moderna foi inaugurada com Descartes. A dúvida metódica – por ele lançada em seu Discurso do Método e radicalizada nas Meditações –, coloca em questão todos os conhecimentos anteriores para instaurar, sobre a experiência subjetiva da dúvida, a verdade inabalável do “cogito”: se tudo eu posso pôr em dúvida, há algo do qual não posso duvidar, a saber, que eu duvido. Ora, se eu duvido, eu penso; e se eu penso, eu sou; eu existo (“cogito, ergo sum”). E Descartes irá descrever o eu pensante como “res cogitans”, uma coisa que pensa, por oposição à “res extensa”. O sujeito é, portanto, uma substância que se define pelo pensamento; uma substância espiritual, indivisível, unitária (indivíduo), por oposição à substância material que pode ser dividida ao infinito. Dir-se-ia que se instituiu, a partir daí, a “metafísica do sujeito”, entendida por muitos como sendo a característica definidora do pensamento moderno.
Efetivamente, dessas duas noções cartesianas derivaram as duas correntes básicas da filosofia moderna: o racionalismo e o empirismo, ambas ancoradas no sujeito, transformado na nova sede do critério de verdade. A crítica cartesiana desautorizou o objetivismo e o realismo ingênuos que dominaram o pensamento antigo e medieval. Até aí vigorava o critério da evidência objetiva, tão bem traduzido no significado da palavra grega denotativa da verdade: a???e?a (aléteia), que significa “coisas não cobertas”, isto é, evidentes, às quais o pensamento deve se submeter. É esse o caráter da definição clássica de verdade como a adequação do intelecto à coisa, ligada à consideração de que o critério último e universal de julgamento da verdade é a evidência objetiva. A partir de Descartes o critério de verdade desloca-se para o sujeito: nada terá estatuto de verdade sem passar pelo crivo da experiência subjetiva. O crivo da razão, expresso na arte de raciocinar fundada no exercício da dúvida, dá origem à tradição racionalista: só poderá ser aceito como verdadeiro aquilo que eu puder reduzir a idéias claras e distintas. Ou o crivo da sensação, expresso na arte de observar fundada no exercício dos sentidos, que origina a tradição empirista: aqui só será considerado verdadeiro aquilo que eu puder perceber por meio de meus sentidos.
No entanto, a história da filosofia moderna pode ser lida, também, como a história da erosão da noção de substância. Assim, se em Descartes o sujeito cognoscente é uma substância que pensa (“res cogitans”) e o mundo é um complexo de substâncias materiais (“res extensae”), o exercício crítico empreendido pelos seus sucessores vai progressivamente bombardeando a noção de substância até bani-la completamente do campo filosófico. Com efeito, o empirista Berkeley fará desaparecer completamente as substâncias materiais, admitindo apenas a existência de substâncias espirituais, como fica evidente na fórmula “esse est percipi”, por ele enunciada. Ser é ser percebido. Isto significa que algo só pode existir se e enquanto for percebido por algum espírito. Portanto, a garantia da existência contínua das coisas que compõem o mundo é dada pela existência de um espírito absoluto e eterno que continuamente está percebendo tudo. Igualmente em Leibniz, o elemento simples que está na base da constituição de todo o universo é a mônada, uma substância espiritual, portanto indivisível e desprovida de extensão. Todo esse movimento desemboca em Kant que, formado na tradição racionalista, ao se deparar com a visão empirista expressa nas análises de Hume, se coloca o problema crítico: como é possível o conhecimento humano?
Sua resposta sintetiza os resultados das correntes racionalista e empirista. O sujeito cognoscente está constituído por formas “a priori”, a partir das quais ele constrói o objeto do conhecimento organizando os dados da experiência por meio das categorias do entendimento. Mas esse sujeito cognoscente não coincide com o sujeito empírico, com aquilo que, ao nível do senso comum, nós entendemos como sendo aquele que conhece. Trata-se do sujeito transcendental, entendido como uma pura função de conhecimento. Não é, pois, uma substância. A filosofia moderna chega, com Kant, ao seu coroamento, momento em que a noção de substância se desintegrou totalmente. Estamos, aqui, no campo do idealismo transcendental. Segundo Kant, o que nós chamamos de objetivo é apenas uma maneira de nomear aquilo que é universalmente subjetivo. Hegel, com seu idealismo absoluto, leva às últimas conseqüências a concepção kantiana o que significa que já se coloca na linha de superação da filosofia moderna, lançando as bases da filosofia contemporânea.
Em Hegel também a idéia de substância desapareceu inteiramente, não se podendo falar em sujeitos do conhecimento ou sujeitos da História. A História não é outra coisa senão a manifestação do espírito absoluto no tempo. Portanto, se a história tem um sujeito, este é o espírito absoluto, do qual os personagens, os líderes, não são mais do que instrumentos. Por isso os chamados grandes líderes da história, cumprido o desígnio do espírito absoluto, “caem como cascas vazias de amêndoa” (HEGEL, 1970, p.58). Ou, numa outra tradução da frase hegeliana impressa na obra Filosofia da história: “caem como cápsulas vazias de um fuzil”.
O que tem a ver Marx com essa concepção que caracterizou a filosofia moderna? Conforme Balibar (1995, p.82-83), “do ponto de vista do idealismo clássico, poderia parecer que Marx tenha procedido simplesmente a uma reunião (que poderia ser uma confusão) dos três pontos de vista” que, acrescento eu, compõem o núcleo da filosofia de Kant e que são, respectivamente, “a ciência (inteligibilidade dos fenômenos), a metafísica (ilusões necessárias do pensamento puro) e a moral ou ‘razão prática’ (imperativo da conduta)”.
Mas, prossegue Balibar, essa comparação põe em evidência a originalidade da “teoria da constituição do mundo” elaborada por Marx, “em relação às que a precederam na história da filosofia (e que, é claro, Marx conhecia intimamente)”. Eis, em síntese, o cerne da originalidade dessa teoria da constituição do mundo:
É que ela não procede da atividade de nenhum sujeito, de qualquer forma de nenhum sujeito que seja pensável a partir do modelo de uma consciência. Em contrapartida, ela constitui sujeitos ou formas de subjetividade e de consciência, no próprio campo da objetividade. De sua posição “transcendente” ou “transcendental”, a subjetividade passou para uma posição de efeito, de resultado do processo social (IDEM, p. 83).
Entendendo o homem como o conjunto das relações sociais, o único sujeito contemplado na teoria de Marx é o sujeito prático que é, “na verdade, um não-sujeito, isto é, a sociedade, como o conjunto das atividades de produção, de troca, de consumo”. Portanto, nessa teoria “a constituição da objetividade não depende do dado prévio de um sujeito, de uma consciência ou de uma razão”. Ao contrário, é ela que “constitui sujeitos que são parte da própria objetividade” (IDEM, IBIDEM). Em suma, Marx opera uma inversão completa do pensamento moderno: “sua constituição do mundo não é obra de um sujeito, ela é uma gênese da subjetividade (uma forma de subjetividade histórica determinada) como parte e contrapartida do mundo social da objetividade” (IDEM, p. 85).
Situando-se no ponto culminante da filosofia moderna, representado por Hegel, Marx buscou empreender a crítica da modernidade de forma contundente, ao mesmo tempo em que procurou desenvolver os elementos da concepção hegeliana que rompiam com o pensamento moderno em sua máxima expressão, consubstanciada na síntese kantiana.
Em contraponto a essa senda científico-filosófica aberta por Marx, nós poderíamos dizer que a maior parte da produção filosófica dos últimos 150 anos não passa de notas à margem do pensamento kantiano que buscam retomar e discutir as conclusões de suas três críticas: a crítica da razão pura, a crítica da razão prática e a crítica do juízo. Com efeito, o positivismo toma como ponto de partida e se constitui num desdobramento da conclusão kantiana segundo a qual apenas a matemática e a física são possíveis como ciência. O vitalismo bergsoniano, assim como o historicismo de Dilthey, procura negar a conclusão de Kant segundo a qual não existe intuição intelectual. O existencialismo e a fenomenologia e, de certo modo, também o positivismo lógico e a filosofia da linguagem partem da constatação kantiana relativa à contraposição entre fenômeno e coisa-em-si.
E concluem pela negação dessa dualidade ao afirmarem a precedência da existência sobre a essência (existencialismo), a descrição do fenômeno como via de acesso à essência (fenomenologia) e ao considerarem que nada existe por trás dos fenômenos (positivismo lógico e filosofia da linguagem). Aliás, sinal dessa força da matriz kantiana é a denominação de escolas neokantianas atribuída aos grupos organizados no interior desses dois últimos movimentos filosóficos.
E, curiosamente, uma das temáticas que toma corpo nessas correntes e se insinua também no interior do pensamento atual que, de forma genérica e um tanto imprecisa, tem sido chamado de pós-moderno, é a do solipsismo. Presente em Kant, mais explorado por Schopenhauer e abordado por Sartre, tal tema ocupa um lugar importante no positivismo lógico, especialmente em Carnap e Wittgenstein. Este dedica ao tema algumas proposições do Tractatus, em especial aquelas da série 5.6. Esta, a proposição de número 5.6, tem o seguinte enunciado: “Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo” WITTGENSTEIN, 1968, p. 111). Por sua vez, a de número 5.62 fará menção explícita ao solipsismo:
Esta observação dá a chave para decidir da questão: até onde o solipsismo é uma verdade.
O que o solipsismo nomeadamente acha é inteiramente correto, mas isto se mostra em vez de deixar-se dizer.
Que o mundo é o meu mundo, isto se mostra porque os limites da linguagem (da linguagem que somente eu compreendo) denotam os limites de meu mundo (Ibidem).
Sartre, por sua vez, faz a seguinte consideração em sua obra principal, O Ser e o Nada:
Uma psicologia que pretendesse ser exata e objetiva, como o “behaviorismo” de Watson, teria, em suma, que adotar o solipsismo como hipótese de trabalho. Não se tratará de negar a presença, no campo de minha experiência, de objetos que nós poderíamos nomear “entes psíquicos”, mas somente de praticar uma espécie de époquê no que se refere à existência de sistemas de representações organizadas por um sujeito e situadas fora de minha experiência (SARTRE, 1943, p.284).
Finalmente, observo que o construtivismo, palavra tão difundida hoje no campo pedagógico, é de matriz kantiana, conforme explicitamente o reconheceu Piaget, sua fonte originária.
À vista das considerações precedentes espero ter deixado claro por que considerei um equívoco gnosiológico circunscrever Marx nos limites do pensamento moderno.
No entanto, sabemos que as concepções que os homens elaboram não têm apenas um caráter gnosiológico, isto é, relativo ao conhecimento da realidade, mas também ideológico, isto é, relativo aos interesses e necessidades humanas. Em suma, o conhecimento nunca é neutro, isto é, desinteressado e imparcial. Os homens são impelidos a conhecer em função da busca dos meios de atender às suas necessidades, de satisfazer às suas carências. Se o aspecto gnosiológico, centrado no conhecimento, tende para a objetividade, o aspecto ideológico, centrado na expressão dos interesses, tende para a subjetividade. Mas esses dois aspectos não se confundem, não se excluem mutuamente e também não se negam reciprocamente. Ou seja: não se trata de considerar que os interesses impedem o conhecimento objetivo nem que este exclui os interesses. Os interesses impelem os conhecimentos e, ao mesmo tempo, os circunscrevem dentro de determinados limites. É nesse terreno que se desencadeiam os embates e as lutas do campo intelectual onde equívocos gnosiológicos podem se manifestar como acertos ideológicos. Assim, embora, como mostrei, a concepção marxiana não possa ser considerada como inserida na tradição da modernidade, sua inserção nesse âmbito por parte daqueles que se situam no horizonte da ordem social instaurada pelo capitalismo corresponde à tentativa de mostrar que a concepção que formula as condições de ultrapassagem desse horizonte se encontra aquém e não além da forma social atualmente dominante.
Nesses termos, trata-se então de um acerto ideológico, pois expressa corretamente os interesses e necessidades dos que enxergam a organização social atual como ainda em expansão e, portanto, capaz de resolver os problemas que a humanidade vem enfrentando.
Mas, se a concepção elaborada por Marx partiu do ponto mais avançado atingido pela modernidade expresso pela filosofia de Hegel, efetuou sua crítica e inverteu os termos do problema posto pelo pensamento moderno desautorizando o idealismo, então não se trata de uma concepção inserida nos limites do pensamento moderno. Não é, pois, uma concepção ultrapassada, mas se insere plenamente no debate contemporâneo. E, pela crítica radical ao idealismo próprio do pensamento moderno, instaura um novo realismo que, obviamente, não pode ser interpretado como uma volta à metafísica da objetividade anterior à modernidade. Ingressamos, agora, num novo entendimento da objetividade que se beneficiou da incorporação de todos os elementos críticos desenvolvidos no seio da filosofia moderna.
Conclusão: para uma pedagogia concreta
Ao discutir as bases da concepção dialética de educação que, a partir de 1984, passei a denominar de “pedagogia histórico-crítica”, afirmei que o movimento que vai do empírico (“o todo figurado na intuição”) ao concreto (“uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas”) pela mediação do abstrato (a análise), constitui uma orientação segura tanto para o processo de descoberta de novos conhecimentos (o método científico) como para o processo de ensino (o método pedagógico). É a partir daí que podemos chegar a uma
pedagogia concreta como via de superação tanto da pedagogia tradicional como da pedagogia moderna.
Uma pedagogia concreta é aquela que considera os educandos como indivíduos concretos, isto é, como sínteses de relações sociais. Assim, enquanto a pedagogia tradicional considera os educandos como indivíduos abstratos, isto é, como expressões particulares da essência universal que caracterizaria a realidade humana, a pedagogia moderna considera os educandos como indivíduos empíricos, isto é, como sujeitos singulares que se distinguem uns dos outros pela sua originalidade, criatividade e autonomia, constituindo-se no centro do processo educativo. Por esse caminho a pedagogia nova elide a história, naturalizando as relações sociais, como se os educandos pudessem se desenvolver simplesmente a partir de suas disposições internas, de suas capacidades naturais, inscritas em seu código genético.
Diferentemente, a pedagogia histórico-crítica considera que os educandos, enquanto indivíduos concretos, se manifestam como unidade da diversidade, “uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas”, síntese de relações sociais. Portanto, o que é do interesse deste aluno concreto diz respeito às condições em que se encontra e que ele não escolheu, do mesmo modo que a geração atual não escolhe os meios e as relações de produção que herda das gerações anteriores. Sua criatividade vai se expressar na forma como assimila as relações herdadas e as transforma. Nessa mesma medida os educandos, enquanto seres concretos, também sintetizam relações sociais que eles não escolheram. Isto anula a idéia de que o aluno pode fazer tudo pela sua própria escolha. Essa idéia não corresponde à realidade humana.
Daí, a grande importância de distinguir, na compreensão dos interesses dos alunos, entre o aluno empírico e o aluno concreto firmando-se o princípio de que o atendimento aos interesses dos alunos deve corresponder sempre aos interesses do aluno concreto. O aluno empírico pode querer determinadas coisas, pode ter interesses que não necessariamente correspondem aos seus interesses concretos. É neste âmbito que se situa o problema do conhecimento sistematizado, que é produzido historicamente e, de certa forma, integra o conjunto dos meios de produção. Esse conhecimento sistematizado pode não ser do interesse do aluno empírico, ou seja, o aluno, em termos imediatos, pode não ter interesse no domínio desse conhecimento; mas ele corresponde diretamente aos interesses do aluno concreto, pois enquanto síntese das relações sociais, o aluno está situado numa sociedade que põe a exigência do domínio deste tipo de conhecimento. E é, sem dúvida, tarefa precípua da escola viabilizar o acesso a este tipo de saber.
Eis como a pedagogia histórico-crítica, trilhando as sendas abertas por Marx, situa-se além e não aquém da pedagogia moderna, habilitando-se a enfrentar os desafios postos à educação pela sociedade atual, ultrapassando o horizonte do capitalismo e da sua forma social correspondente, a sociedade burguesa. Por isso, os que se situam nos limites desse horizonte incorrerão, compreensivelmente, no equívoco gnosiológico de considerar a pedagogia inspirada no marxismo como uma concepção ultrapassada, circunscrita à problemática do século XIX. De fato, os interesses vinculados à ordem social hoje dominante, de cunho capitalista, não permitem outra interpretação, razão pela qual o mencionado equívoco gnosiológico se expressa como um acerto ideológico. Mas, para a grande maioria da população, cujos interesses só poderão ser contemplados para além dos limites da sociedade capitalista, não há entrave para a compreensão do movimento histórico que, como se evidencia nas pesquisas levadas a efeito por Marx, coloca a exigência de superação da ordem burguesa pela construção de uma sociedade em que estejam abolidas as relações de dominação entre os homens.
Referências:
BALIBAR, Étienne, A filosofia de Marx. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Filosofia de la história. Barcelona, Zeus, 1970.
LOMBARDI, José Claudinei e SAVIANI, Dermeval (Orgs.), Marxismo e educação: debates contemporâneos. Campinas, Autores Associados, 2005.
MARX, Karl, Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa, Estampa, 1973.
SAVIANI, D. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos.
Revista Brasileira de Educação, v. 12 n. 34 jan./abr. 2007.
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. 4ª Ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1982.