Padres do Deserto
A Escritura,
escola de vida A vocação de Antão, como nos foi descrita por Atanásio em sua
Vida de Antão, é bem conhecida. Certo dia o jovem Antão, que havia sido criado
numa família cristã da Igreja de Alexandria (ou ao menos na região de
Alexandria) e que havia portanto escutado as suas Escrituras serem lidas desde
sua infância, entra numa igreja e é particularmente movido pelo texto da
Escritura que ouve sendo lida: a história da vocação do jovem rico: "Se
queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e depois,
segue-me; e terás um tesouro nos céus " (Mt 19,21 Vit. Ant. 2). Antão sem
dúvida havia escutado este texto muitas vezes antes: mas naquele dia a mensagem
o acerta com mais força, e recebe-a como um chamado pessoal. Responde, então ao
chamado, vende a propriedade da família - que era bastante considerável - e
distribui os lucros desta venda aos pobres do vilarejo, conservando só o
suficiente para manter sua irmã mais nova por quem é responsável. Pouco depois,
ao entrar na igreja de novo, ouve outro texto do Evangelho que o afeta tanto
quanto o primeiro: "Não vos preocupeis com o amanhã" (Mt 6,34: Vit.
Ant. 3). Este texto também vai direto ao seu coração como um chamado pessoal.
Confia, assim sua irmã a uma comunidade de virgens (tais comunidades existiam há
muito), liberta-se de tudo o que fica com ele e assume uma vida ascética
próximo à sua aldeia, sob a orientação dos ascetas da região. Esta história
mostra claramente a importância e o significado que a Escritura tinha entre os
Padres do Deserto. Antes de tudo, era uma escola de vida. E porque era uma
escola de vida, era também uma escola de oração para os homens e as mulheres
que desejavam fazer de sua vida uma oração contínua, como a Escritura lhes
pedia. Os Padres do Desero desejavam viver fielmente em suas vidas todos os
preceitos da Escritura. E nelas o primeiro preceito concreto que encontraram
sobre a frequência de oração não era o de que deveriam rezar nesta ou naquela
hora do dia ou da noite, mas que deveriam rezar sem cessar. Atanásio escreve de
Antão: (Vit. Ant. 3): "Ele trabalhava com suas mãos, tendo ouvido que quem
é ocioso, não deve comer (2 Tes 3,10). E gastava o que ganhava em parte com
pão, e em parte dando aos necessitados. Orava constantemente, uma vez que
aprendera que é necessário rezar sem cessar em particular. Pois ele prestava
uma atenção tão grande ao que era lido que nada lhe escapava da Escritura -
conservava tudo e retinha na memória que ocupava o lugar de livros.
"Deve-se notar logo neste texto de Atanásio que a oração contínua é
acompanhada de outras atividades, em particular do trabalho, e também a
expressão de que ele (Antão) prestava muita atenção ao que era lido. Obviamente
não podemos falar da Escritura como uma escola de oração entre os Padres do
Deserto sem nos referirmos a duas admiráveis Conferências que Cassiano dedicou
explicitamente à oração, ambas atribuídas ao abade Isaac, a 9a. e a 10a. O
princípio fundamental é dado desde o início da Conferência 9: "Todo o
propósito do monge e da perfeição do coração consistem numa perseverança
ininterrupta na oração". E Isaac explica que todo o resto da vida
monástica, a ascese e a prática das virtudes não tem sentido ou razão de ser a
menos que conduza a tal fim.
Filhos da
Igreja do Egito e de Alexandria.
Esta maneira
de entender a Escritura como Regra de vida não era, entretanto, peculiar dos
monges. Não devemos esquecer que os Padres do deserto que nos são conhecidos
pelos Apoftegmas, a literatura pacomiana, Paládio e Cassiano, etc., são antes
de tudo monges egípcios do final do século terceiro e início do século quarto.
Estes monges são filhos da Igreja. Pertencem a uma Igreja específica, a do
Egito, formada na tradição espiritual de Alexandria. O mito de acordo com o
qual a maioria dos primeiros monges, começando por Antão, era iletrada e ignorante,
não é sustentado pela pesquisa científica. Muitos estudos recentes,
particularmente os de Samuel Rubenson sobre as Cartas de Antão, mostraram que
Antão e os primeiros monges do Deserto do Egito assimilaram o ensinamento
espiritual da Igreja de Alexandria, que era profundamente marcada pelo
ensinamento dos grandes mestres da Escola de Alexandria e, em particular, pela
inspiração mística dada pelo seu mais ilustre mestre, o grande Orígenes. A
Igreja de Alexandria nasceu da primeira geração do Cristianismo no coração de
uma diáspora judaica altamente educada que contava, de acordo com Plínio, cerca
de um milhão de membros: isto explica o fato de que esta Igreja de Alexandria e
do Egito tiveram desde o início uma orientação judaico-cristão muito marcante.
Explica também sua abertura à tradição escriturística e mística que marcaram as
Igrejas Judeo-Cristãs das primeiras gerações de cristãos. A Escola do Deserto
é, sob muitos pontos de vista, a réplica em solidão da Escola de Alexandria
onde sabemos que Orígenes viveu com seus discípulos uma forma de vida monástica
completamente centrada sobre a Palavra de Deus. De acordo com a bela descrição
de Jerônimo, esta vida foi uma alternância contínua entre oração e leitura,
leitura e oração, noite e dia (Carta a Marcella 43, 1; PL 22:478: Hoc diebus
egisse et noctibus, ut et lectio orationem exciperet, et oratio lectionem.) Nem
era isto exclusivo do Egito. Quase ao mesmo tempo, Cipriano de Cartago
formulava uma regra que seria depois reproduzida por quase todos os Padres
Latinos: "Rezai assiduamente ou lede assiduamente; por vezes falai a Deus,
noutras vezes, escutai a Deus falando a vós" (carta 1,15; PL 4:221 B: Sit
tibi vel oratio assidua vel lectio: nunc cum Deo loquere, nunc Deus tecum - que
se tornou a fórmula clássica: "quando rezais, vós falais com Deus; quando
ledes, Deus fala convosco.") Se todos os monges egípcios não leram
Evágrio, e se uns poucos deles devem ter lido Orígenes no texto, o fato é que
eles foram formados para a espiritualidade cristã pelo ensinamento de pastores
que permaneceram fortemente influenciados pela orientação que Orígenes dera à
Igreja de Alexandria através da Escola que dirigira ali por muitos anos. Isto é
o que explica a sólida espiritualidade bíblica do monaquismo primitivo. Pode-se
objetar imediatamente que as citações bíblicas são, quando tudo está dito e
feito, relativamente poucas nos Apoftegmas, mesmo se elas são muito mais
frequentes na literatura pacomiana. A resposta é que a Escritura modelou de tal
forma o modo de vida desses ascetas que seria supérfluo citar-lhe as passagens.
O monge "pneumatophoros" era aquele que, vivendo de acordo com as
Escrituras, estava cheio do mesmo Espírito que inspirara as Escrituras.
(Estavam longe então do costume moderno que exige que nenhum enunciado nenhum
ensinamento seja levado a sério, a menos que seja embelezado com uma nota de
rodapé indicando todas as pessoas que tinham dito a mesma coisa antes de nós).
A tradição do que agora é chamado de lectio divina, isto é, o desejo de
permitir-se ser desafiado e transformado pelo fogo da Palavra de Deus, não
seria compreendido sem sua dependência, para além do monaquismo primitivo, da
tradição do ascetismo cristão dos três primeiros séculos, e mesmo de suas
raízes na tradição de Israel. Da catequese recebida na sua Igreja local, o
monge aprendeu que foi criado à imagem de Deus, que esta imagem foi deformada
pelo pecado e que precisa ser reformada. Para isso, precisa deixar-se ser
transformado e remodelado à imagem do Cristo. Pela ação do Espírito Santo e sua
vida de acordo com o Evangelho, sua semelhança com o Cristo é gradualmente
restaurada e ele é capaz de conhecer a Deus. Vemos que o objetivo da vida do
monge, como expresso por Cassiano, é a oração contínua, que ele descreve como
uma consciência constante da presença de Deus, realizada através da pureza do
coração. Não é adquirida através desta ou daquela observância, nem mesmo
através da leitura ou meditação sobre a Escritura, mas através de deixar-se ser
transformado pela Escritura. O contato com a Palavra de Deus - não importa se o
contato se dá através da leitura litúrgica da Palavra, do ensinamento de um pai
espiritual, da leitura em particular de um texto ou da simples ruminação de um
versículo ou de algumas palavras aprendidas decor - este contato é o ponto de
partida para um diálogo com Deus. Este diálogo é estabelecido e prosseguido na
medida que o monge atingiu certa pureza de coração, uma simplicidade de coração
e de intenção, e também na medida que ele colocou em prática os meios de chegar
a esta pureza do coração e de mantê-la. Este diálogo, no decurso do qual a
Palavra incessantemente desafia o monge à conversão, sustenta esta contínua
atenção a Deus, que os Padres consideravam como oração contínua, e que é o
objetivo de sua vida. Para os monges do Deserto, a leitura da Palavra de Deus
não é simplesmente um exercício religioso de lectio que gradualmente prepara o
espírito e coração para a "meditatio" e depois para a"
oratio", na esperança que possam mesmo chegar à" contemplatio"
(... se possível antes que a meia hora ou a hora de lectio termine). Para os
monges do deserto, o contato com a Palavra é contato com o fogo que queima,
perturba, chama violentamente à conversão. O contato com a Escritura não é para
eles um método de oração; é um encontro místico. E este encontro frequentemente
os torna temerosos, mas ao mesmo tempo os faz conscientes de suas exigências.
Conclusão.
Os Padres do
Deserto nos lembram da importância primordial da Escritura na vida do cristão e
da necessidade de nos deixar ser constantemente transformados na Palavra de
Deus que é o Cristo. Além disto, mesmo um estudo rápido como fizemos, da
maneira em que eles abordaram a Escritura, por si mesmo nos faz trazer à baila
certos aspectos da concepção moderna da lectio divina, ou mais precisamente,
apela para que ir além deles para chegar a um entendimento mais profundo da
unidade de sua experiência vivida. O monge, mais do que qualquer outro, não
pode se permitir estar dividido. Seu próprio nome, monachos, o lembra sem
cessar da unidade da preocupação, da aspiração e de atitude própria do homem ou
mulher que escolheu viver um único amor com um coração indiviso.
Fonte:
Vaticano. D. Armand Veilleux, OCSO
Tradução:
Cecilia Fridman, Rio Negro, PR, Brasil,
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