BLOG DO PROFº ROBERTO CATARINO

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segunda-feira, 24 de junho de 2013

OS PADRES DO DESERTO


Padres do Deserto
 
 
 
A Escritura, escola de vida A vocação de Antão, como nos foi descrita por Atanásio em sua Vida de Antão, é bem conhecida. Certo dia o jovem Antão, que havia sido criado numa família cristã da Igreja de Alexandria (ou ao menos na região de Alexandria) e que havia portanto escutado as suas Escrituras serem lidas desde sua infância, entra numa igreja e é particularmente movido pelo texto da Escritura que ouve sendo lida: a história da vocação do jovem rico: "Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e depois, segue-me; e terás um tesouro nos céus " (Mt 19,21 Vit. Ant. 2). Antão sem dúvida havia escutado este texto muitas vezes antes: mas naquele dia a mensagem o acerta com mais força, e recebe-a como um chamado pessoal. Responde, então ao chamado, vende a propriedade da família - que era bastante considerável - e distribui os lucros desta venda aos pobres do vilarejo, conservando só o suficiente para manter sua irmã mais nova por quem é responsável. Pouco depois, ao entrar na igreja de novo, ouve outro texto do Evangelho que o afeta tanto quanto o primeiro: "Não vos preocupeis com o amanhã" (Mt 6,34: Vit. Ant. 3). Este texto também vai direto ao seu coração como um chamado pessoal. Confia, assim sua irmã a uma comunidade de virgens (tais comunidades existiam há muito), liberta-se de tudo o que fica com ele e assume uma vida ascética próximo à sua aldeia, sob a orientação dos ascetas da região. Esta história mostra claramente a importância e o significado que a Escritura tinha entre os Padres do Deserto. Antes de tudo, era uma escola de vida. E porque era uma escola de vida, era também uma escola de oração para os homens e as mulheres que desejavam fazer de sua vida uma oração contínua, como a Escritura lhes pedia. Os Padres do Desero desejavam viver fielmente em suas vidas todos os preceitos da Escritura. E nelas o primeiro preceito concreto que encontraram sobre a frequência de oração não era o de que deveriam rezar nesta ou naquela hora do dia ou da noite, mas que deveriam rezar sem cessar. Atanásio escreve de Antão: (Vit. Ant. 3): "Ele trabalhava com suas mãos, tendo ouvido que quem é ocioso, não deve comer (2 Tes 3,10). E gastava o que ganhava em parte com pão, e em parte dando aos necessitados. Orava constantemente, uma vez que aprendera que é necessário rezar sem cessar em particular. Pois ele prestava uma atenção tão grande ao que era lido que nada lhe escapava da Escritura - conservava tudo e retinha na memória que ocupava o lugar de livros. "Deve-se notar logo neste texto de Atanásio que a oração contínua é acompanhada de outras atividades, em particular do trabalho, e também a expressão de que ele (Antão) prestava muita atenção ao que era lido. Obviamente não podemos falar da Escritura como uma escola de oração entre os Padres do Deserto sem nos referirmos a duas admiráveis Conferências que Cassiano dedicou explicitamente à oração, ambas atribuídas ao abade Isaac, a 9a. e a 10a. O princípio fundamental é dado desde o início da Conferência 9: "Todo o propósito do monge e da perfeição do coração consistem numa perseverança ininterrupta na oração". E Isaac explica que todo o resto da vida monástica, a ascese e a prática das virtudes não tem sentido ou razão de ser a menos que conduza a tal fim.
 
Filhos da Igreja do Egito e de Alexandria.
Esta maneira de entender a Escritura como Regra de vida não era, entretanto, peculiar dos monges. Não devemos esquecer que os Padres do deserto que nos são conhecidos pelos Apoftegmas, a literatura pacomiana, Paládio e Cassiano, etc., são antes de tudo monges egípcios do final do século terceiro e início do século quarto. Estes monges são filhos da Igreja. Pertencem a uma Igreja específica, a do Egito, formada na tradição espiritual de Alexandria. O mito de acordo com o qual a maioria dos primeiros monges, começando por Antão, era iletrada e ignorante, não é sustentado pela pesquisa científica. Muitos estudos recentes, particularmente os de Samuel Rubenson sobre as Cartas de Antão, mostraram que Antão e os primeiros monges do Deserto do Egito assimilaram o ensinamento espiritual da Igreja de Alexandria, que era profundamente marcada pelo ensinamento dos grandes mestres da Escola de Alexandria e, em particular, pela inspiração mística dada pelo seu mais ilustre mestre, o grande Orígenes. A Igreja de Alexandria nasceu da primeira geração do Cristianismo no coração de uma diáspora judaica altamente educada que contava, de acordo com Plínio, cerca de um milhão de membros: isto explica o fato de que esta Igreja de Alexandria e do Egito tiveram desde o início uma orientação judaico-cristão muito marcante. Explica também sua abertura à tradição escriturística e mística que marcaram as Igrejas Judeo-Cristãs das primeiras gerações de cristãos. A Escola do Deserto é, sob muitos pontos de vista, a réplica em solidão da Escola de Alexandria onde sabemos que Orígenes viveu com seus discípulos uma forma de vida monástica completamente centrada sobre a Palavra de Deus. De acordo com a bela descrição de Jerônimo, esta vida foi uma alternância contínua entre oração e leitura, leitura e oração, noite e dia (Carta a Marcella 43, 1; PL 22:478: Hoc diebus egisse et noctibus, ut et lectio orationem exciperet, et oratio lectionem.) Nem era isto exclusivo do Egito. Quase ao mesmo tempo, Cipriano de Cartago formulava uma regra que seria depois reproduzida por quase todos os Padres Latinos: "Rezai assiduamente ou lede assiduamente; por vezes falai a Deus, noutras vezes, escutai a Deus falando a vós" (carta 1,15; PL 4:221 B: Sit tibi vel oratio assidua vel lectio: nunc cum Deo loquere, nunc Deus tecum - que se tornou a fórmula clássica: "quando rezais, vós falais com Deus; quando ledes, Deus fala convosco.") Se todos os monges egípcios não leram Evágrio, e se uns poucos deles devem ter lido Orígenes no texto, o fato é que eles foram formados para a espiritualidade cristã pelo ensinamento de pastores que permaneceram fortemente influenciados pela orientação que Orígenes dera à Igreja de Alexandria através da Escola que dirigira ali por muitos anos. Isto é o que explica a sólida espiritualidade bíblica do monaquismo primitivo. Pode-se objetar imediatamente que as citações bíblicas são, quando tudo está dito e feito, relativamente poucas nos Apoftegmas, mesmo se elas são muito mais frequentes na literatura pacomiana. A resposta é que a Escritura modelou de tal forma o modo de vida desses ascetas que seria supérfluo citar-lhe as passagens. O monge "pneumatophoros" era aquele que, vivendo de acordo com as Escrituras, estava cheio do mesmo Espírito que inspirara as Escrituras. (Estavam longe então do costume moderno que exige que nenhum enunciado nenhum ensinamento seja levado a sério, a menos que seja embelezado com uma nota de rodapé indicando todas as pessoas que tinham dito a mesma coisa antes de nós). A tradição do que agora é chamado de lectio divina, isto é, o desejo de permitir-se ser desafiado e transformado pelo fogo da Palavra de Deus, não seria compreendido sem sua dependência, para além do monaquismo primitivo, da tradição do ascetismo cristão dos três primeiros séculos, e mesmo de suas raízes na tradição de Israel. Da catequese recebida na sua Igreja local, o monge aprendeu que foi criado à imagem de Deus, que esta imagem foi deformada pelo pecado e que precisa ser reformada. Para isso, precisa deixar-se ser transformado e remodelado à imagem do Cristo. Pela ação do Espírito Santo e sua vida de acordo com o Evangelho, sua semelhança com o Cristo é gradualmente restaurada e ele é capaz de conhecer a Deus. Vemos que o objetivo da vida do monge, como expresso por Cassiano, é a oração contínua, que ele descreve como uma consciência constante da presença de Deus, realizada através da pureza do coração. Não é adquirida através desta ou daquela observância, nem mesmo através da leitura ou meditação sobre a Escritura, mas através de deixar-se ser transformado pela Escritura. O contato com a Palavra de Deus - não importa se o contato se dá através da leitura litúrgica da Palavra, do ensinamento de um pai espiritual, da leitura em particular de um texto ou da simples ruminação de um versículo ou de algumas palavras aprendidas decor - este contato é o ponto de partida para um diálogo com Deus. Este diálogo é estabelecido e prosseguido na medida que o monge atingiu certa pureza de coração, uma simplicidade de coração e de intenção, e também na medida que ele colocou em prática os meios de chegar a esta pureza do coração e de mantê-la. Este diálogo, no decurso do qual a Palavra incessantemente desafia o monge à conversão, sustenta esta contínua atenção a Deus, que os Padres consideravam como oração contínua, e que é o objetivo de sua vida. Para os monges do Deserto, a leitura da Palavra de Deus não é simplesmente um exercício religioso de lectio que gradualmente prepara o espírito e coração para a "meditatio" e depois para a" oratio", na esperança que possam mesmo chegar à" contemplatio" (... se possível antes que a meia hora ou a hora de lectio termine). Para os monges do deserto, o contato com a Palavra é contato com o fogo que queima, perturba, chama violentamente à conversão. O contato com a Escritura não é para eles um método de oração; é um encontro místico. E este encontro frequentemente os torna temerosos, mas ao mesmo tempo os faz conscientes de suas exigências.
Conclusão.
Os Padres do Deserto nos lembram da importância primordial da Escritura na vida do cristão e da necessidade de nos deixar ser constantemente transformados na Palavra de Deus que é o Cristo. Além disto, mesmo um estudo rápido como fizemos, da maneira em que eles abordaram a Escritura, por si mesmo nos faz trazer à baila certos aspectos da concepção moderna da lectio divina, ou mais precisamente, apela para que ir além deles para chegar a um entendimento mais profundo da unidade de sua experiência vivida. O monge, mais do que qualquer outro, não pode se permitir estar dividido. Seu próprio nome, monachos, o lembra sem cessar da unidade da preocupação, da aspiração e de atitude própria do homem ou mulher que escolheu viver um único amor com um coração indiviso.
Fonte: Vaticano. D. Armand Veilleux, OCSO
Tradução: Cecilia Fridman, Rio Negro, PR, Brasil,
 
 


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